Era um sábado de manhã. O café estava mais escuro que o normal. Precisei reforçar a dose de pó no filtro. O plantão da noite passada não fora tranquilo! Após a chegada do coronavírus, nenhum plantão em CTI é tranquilo.
As descompensações dos pacientes são súbitas, os pulmões se enchem de líquido, os rins param, o sangue deixa de ser líquido e vira uma gelatina de coágulos dentro das veias. Uma doença imprevisível. Desafiadora.
Mas gosto de desafios! Desafio a falta de passagem de ar nos bronquíolos com intubação e respiradores mecânicos, a falência renal com hemodiálise e o sangue estagnado volta a correr com anticoagulantes. Tudo dosado para cada paciente. Uma guerra exaustiva... e meu corpo sentia o peso daquele plantão naquela manhã. Estava exausta.
Mas não podia descansar. Precisava estudar e preparar uma aula para meus colegas médicos. O café seria meu guardião, estava ali, bem quente, me proibindo de descansar um pouco.
Eis que, da varanda lateral da sala, uma barulheira, gritos! A essa hora da manhã? Pouso minha xícara na mesa, e como boa e curiosa moradora urbana, vou à varanda descobrir o que acontecia.
Era a voz alta e estridente de uma criança do meu prédio, gritando com alguém que mora em uma casinha de vila bem ao lado.
"-Vovó, olha para mim! Sou eu! Vovó, estou com muitas saudades! Vovó, olha como cresci! Trouxe desenhos para você!"
A avó estava em uma casinha de vila amarela, acenando da janela de moldura marrom, mandando beijos entre lágrimas de alegria!
No breve diálogo, deu para entender que a menina mora com a mãe, e, depois de muito tempo de distanciamento social imposto pela pandemia, pôde passar um fim-de-semana na casa do pai. Como a senhora faz parte do grupo de risco aumentado, aquela seria a aproximação máxima da netinha. Aquele era um momento de reencontro entre pessoas que se amavam.
Depois o barulho cessou. A avó atendeu o telefone celular. A conversa virou privada. Provavelmente, o pai se sentiu envergonhado em incomodar tanto a vizinhança àquela hora da manhã.
Bobo. Não incomodou. Os vizinhos, que estavam curiosos em suas janelas acompanhando aquele momento, voltaram a seus afazeres matinais com um sorriso nos lábios. Todos foram tocados por aquele carinho entre janelas! Era quase palpável.
Há barulhos que nos fazem bem! Um passarinho aprendendo a cantar uma melodia na árvore em frente à sua janela pela manhã, o vento nas folhas dessa mesma árvore anunciando que o calorão vai dar uma trégua, os sinos da igrejinha de bairro badalando às seis da tarde, a menina reencontrando sua vovó e seu pai...
Fiquei mais um tempinho na varanda... ainda estava absorvendo um pouquinho daquela cena, como quem acaba de ver um pôr-do-sol magnífico, e mesmo depois que o último gosto de sol se dissolveu na boca da noite, o sabor perdura por mais alguns minutos.
A esperança está no carinho, nas relações, na empatia. O novo normal pode ser muito bonito.
Ninguém ousou reclamar daquela algazarra de manhã, pelo contrário: fizemos mais silêncio. Nada pode ser mais importante, nesse momento, que um reencontro.
Voltei para minha mesa de estudos.
O café já estava frio.
Tudo bem. Não precisava mais dele. Já estava com o coração bem quentinho, e a consciência bem desperta.
Ticyana Azambuja é médica anestesista e intensivista, e estava na linha de frente no combate a Covid-19 no Rio de Janeiro.
Em uma tarde de sábado, foi espancada por uma mulher e quatro homens após protestar contra uma festa que ocorria diariamente em sua vizinhança. Há barulhos que toleramos e alguns que até nos nutrem a alma.
E há barulhos carregados de tanto desrespeito que são intoleráveis.