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O mundo pode ser diferente

'A gente não quer só comida'

A população em situação de rua tem fome, mas também tem outras necessidades que precisam ser compreendidas pelo poder público

Imagem: Projeto "De volta ao lar"
Imagem: Projeto "De volta ao lar"

A pandemia do novo coronavírus trouxe grandes desafios não somente para o Brasil, mas para todo o mundo. Além das consequências sociais e econômicas promovidas pelo surto de proporções globais, nos deparamos com problemas e mazelas que, há algum tempo, já assombravam o país e o Estado do Rio de Janeiro e que, agora, tornaram-se ainda mais evidentes. Neste contexto, destacamos um grave sintoma: o crescimento do número de pessoas em situação de rua e as suas degradantes condições de vida.

Por mais que muitas autoridades não deem a devida atenção ao tema, essas pessoas também estão entre nós. Encontram-se aqui e dividem de maneira precária e, quase sempre desumana, os espaços públicos. Para elas, a nacionalidade brasileira se resume apenas a um mero detalhe, sem muito significado. Na prática, aqueles que deveriam gozar dos mesmos direitos humanos dos seus compatriotas, sobrevivem à margem da sociedade.

Dois estudos realizados pelo Instituto de Pesquisa Aplicada (Ipea) apontaram o crescimento na população em situação de rua no Brasil, bem como alertaram que a propagação do novo coronavírus aumentou a vulnerabilidade dessa parcela dos brasileiros. Os dados foram divulgados em junho deste ano e também revelaram que, a partir de 2012, a população em situação de rua cresceu 140%, chegando a quase 222 mil brasileiros, em março de 2020. Com a conclusão das pesquisas, o Ipea ainda alertou sobre a necessidade de uma atuação mais intensa do poder público.

Vale destacar que o estudo "Estimativa da População em Situação de Rua no Brasil" utilizou dados de 2019. Eles foram extraídos do censo anual do Sistema Único de Assistência Social (Censo Suas), que conta com informações das secretarias municipais, e do Cadastro Único (CadÚnico) do Governo Federal.

Centro do Rio de Janeiro, junho de 2020 / Imagem: Jorge Hely

Além disso, a análise constatou que a maioria dos moradores de rua (81,5%) estão nos municípios com mais de 100 mil habitantes. As regiões mais afetadas são o Sudeste (56,2%), o Nordeste (17,2%) e o Sul (15,1%). Na ocasião da publicação das pesquisas, o sociólogo do Ipea e autor do estudo, Marco Antônio Natalino, registrou algumas observações sobre o tema.

"O tamanho do município, bem como seu grau de urbanização e de pobreza estão associados ao número de pessoas morando nas ruas, o que indica a necessidade de políticas públicas adequadas a essas cidades", afirmou Marco Antônio.

Já na pesquisa "População em Situação de Rua em Tempos de Pandemia: Um Levantamento de Medidas Municipais Emergenciais", o Ipea mapeou, por meio dos sites oficiais, as principais medidas de assistência adotadas pelas prefeituras. De acordo com o órgão, esse mapeamento foi realizado em capitais do Nordeste e do Sudeste.

Rio de janeiro, junho de 2020 / Imagem: Jorge Hely


Entre as 13 capitais das regiões analisadas, e segundo os dados do Ipea, as ações mais reportadas são: abrigamento (12), higiene (9) e alimentação (8). Já as ações menos frequentes são: os centros emergenciais de serviço (2) e as atividades específicas de orientação (6) para usuários de álcool e outras drogas, pessoas com transtornos mentais e iniciativas específicas para crianças e adolescentes em situação de rua.

É importante ressaltar que o Ipea ainda constatou, com os dados dos levantamentos, que apesar das ações emergenciais serem realizadas pelas prefeituras locais, houve aumento do contingente em situação de rua durante a pandemia. O motivo desse crescimento seria a desocupação crescente e mais intensa devido ao desaquecimento da economia no curto e médio prazo.

Sobre isso, Marco Antônio alertou que as pessoas em vulnerabilidade sofrem com a ausência de insumos básicos e com a falta de abrigos suficientes. Ele destacou a urgência de alternativas para combater o aumento temporário da capacidade de acolhimento, como o uso de escolas e de hotéis, que estão ociosos, e poderiam ser adaptados com rapidez.

Rio de Janeiro, junho de 2020 / Imagem: Jorge Hely

"Com o avanço da pandemia, essas pessoas enfrentam mais dificuldades de acesso à higiene, além de água e alimentação. E, mesmo que quisessem deixar as ruas, não existiria abrigo para todos", disse o pesquisador.

A ampliação de vagas para acolhimento e a importância da atuação das equipes de abordagem social e de saúde, da distribuição de alimentos e da oferta de equipamentos públicos de higiene também foram destacados nas pesquisas. Bem como, a relevância das análises para orientar as autoridades sobre as medidas mais eficazes a serem tomadas.

"Ao governo federal, cabe o repasse de recursos suficientes e as orientações estratégicas para garantir sua aplicação efetiva, com qualidade do gasto. As medidas municipais analisadas também podem orientar municípios que buscam aprimorar sua atenção durante a pandemia", concluiu o autor.

Você tem sede de quê?

Bia é transexual e, desde os 7 anos, vive nas ruas da capital fluminense. Ela usa as paredes como uma espécie de armário / Imagem: Jorge Hely

Ricardo Tavares é fundador do Projeto Ores. Desde 2016, a ONG atende pessoas em situação rua oferecendo um banho de cidadania aos cidadãos esquecidos pelo poder público. Ricardo e sua equipe de voluntários trabalham com o objetivo de reintegrar e ressocializar quem procura o apoio da iniciativa.

Ao portal Grande Tijuca, ele contou que, com o início da pandemia, percebeu que a população de rua sofreu bastante. Contudo, o que mais atingiu e está atingindo os indivíduos não é doença, mas sim, o distanciamento social.

"Na verdade, eles estão afastados de todos. Ainda mais. Nós compramos um ônibus para ajudar a otimizar nosso trabalho e, agora, fora o banho que já oferecíamos, temos parceiros que ajudam com comida e com a ressocialização, ajudando gente que nem é do estado a voltar para casa. Tenho certeza do impacto negativo da pandemia na vida deles. A diminuição do movimento das ruas aumentou a vulnerabilidade, o sentimento de solidão e de falta de apoio", lamentou.



O fundador da Ores ainda falou que a assistência à população de rua foi ampliada. Hoje, o projeto acontece todas as segundas, quartas e sextas-feiras, no Largo da Carioca, no Centro do Rio de Janeiro.

"Com o surto da Covid-19, a gente passou a atendê-los todos os dias. Temos um funcionário que está diariamente na nossa base, que funciona até o último banho. Além disso, o ônibus ajudou a transformar a ideia em um programa itinerante. Isso permitiu que oferecêssemos apoio a outras pessoas e em outros bairros da capital", informou.

Vale ressaltar que a parceria citada por Ricardo Tavares diz respeito a outra iniciativa que atua com pessoas em situação de rua: o projeto "De volta ao Lar". O DVL se denomina uma organização humanitária, sem vínculos políticos ou partidários, e que atua no Rio de Janeiro. A ONG tem como principal missão solucionar de maneira definitiva questões que ocasionam a moradia nas ruas, resgatando laços familiares e prestando assessoria jurídica, além de resolver problemas relacionados à saúde pública ou privada.



Desde 2019, com a colaboração de 30 funcionários, o DVL já tirou 187 pessoas das ruas e está assistindo 1.080 famílias. Contando com a ajuda financeira da sociedade civil e de algumas empresas privadas, seus colaboradores arrecadam alimentos e acompanham grupos familiares, oferecendo capacitação profissional e a possibilidade de emprego.

De acordo com a assessoria do prjeto, os desafios durante a pandemia aumentaram e o número de pessoas em vulnerabilidade também. Contudo, a DVL destacou que o grande obstáculo para o poder público está nos usuários de drogas e nas pessoas com problemas psicológicos e psiquiátricos. Desse modo, um centro de reabilitação com uma equipe multidisciplinar seria de grande valia para um numeroso grupo.

Ainda diante de tantas dificuldades e um impacto direto em cerca de 5.000 pessoas, a ONG conseguiu reinserir 24 indivíduos ao seio familiar. Entre eles, está o paraibano Fábio Antônio da Silva, 32. Ele conheceu o projeto no Centro do Rio e, com a ajuda dos profissionais da DVL, retornou pra sua terra.


Fábio e sua mãe / Imagem: Arquivo pessoal


"Eu tinha uma família e acabei me separando devido o uso de drogas. Fui parar nas ruas, pois não tinha pra onde ir. Fiquei uns cinco ou seis meses sem rumo. Então, conheci o projeto no Largo da Carioca. Nunca tinha morado nas ruas, por isso, posso dizer que foi uma experiência e tanto", relatou Fábio.

Ele comentou sobre a falta de uma olhar mais sensível do poder público para quem está abandonado e da relevância de iniciativas como o DVL e o ORES.

"O descaso com a população de rua é imenso. Eles não querem saber de quem vive largado por aí. Atualmente, as minhas perspectivas para o futuro melhoraram e eu penso em trabalhar e ajudar minha mãe. Mesmo distante, ainda recebo o apoio do "De volta ao lar", o que é muito importante neste momento de reinício. Com eles, aprendi a viver melhor e também a ser uma pessoa boa e honesta", disse.

"A gente quer saída para qualquer parte"

Jacy Oliveira, o pelezinho, com a abordagem adequada conseguiu sair das ruas e alugar um imóvel / Imagem: Vitor Pordeus


O ator e psiquiatra Vitor Pordeus trabalha com pessoas em situação de rua. Formado pela Universidade Federal Fluminense (UFF), o médico é professor convidado de psiquiatria social e transcultural da Universidade de McGill, na cidade Montréal, no Canadá, além de pesquisador em psiquiatria cultural. Ele ressaltou que a discussão sobre a população em situação de rua é um tema universal. O especialista já trabalhou em países como o Canadá e o México e, até mesmo nesses locais, essas pessoas existem.

"Já consegui retirar vários pacientes das ruas. Há uma relação estreita entre o hospício e a rua. Geralmente, muitos desses indivíduos passam por alas psiquiátricas e fazem uso de medicações psicotrópicas. Inclusive, muitas vezes, ele é mal atendido", avaliou o médico.

Pordeus destacou o método da famosa psiquiatra brasileira Nise da Silveira. Ele é um discípulo de Nise e acredita que os moradores de rua, quando portadores de doença mental, sofrem um trituramento da consciência.

"Tudo é o resultado das péssimas condições de vida. A pobreza, a fome, a rejeição social, a falta de solidariedade, a fragmentação da comunidade, da cidade e da família são fatores que contribuem para isso. Essas pessoas acabam indo para as ruas por causa da crise econômica, da perda do emprego ou de algum tipo de falência. Por tal motivo, ninguém está livre disso", alertou.

O especialista relembrou que na rua não há referências, muito menos, algum tipo de conforto. Tais ausências acabam incentivando a fragmentação mental e funcionando como um gatilho para o surgimento das psicoses.

"Não é incomum que muitos moradores de rua estejam em estado de delírio. Grande parte são psicóticos crônicos, com evolução de longa duração e esquizofrênicos na sua maioria. Logo, podemos considerá-los pacientes psiquiátricos. E neste caso, a abordagem é psiquiátrica, não há outra opção", reforçou.

Miriam Rodrigues, 44, também recebeu a abordagem adequada e, hoje, está fora das ruas / Imagem: Vitor Pordeus

Pordeus criticou as políticas públicas adotadas pelas gestões do estado fluminense. Segundo ele, não existe uma assistência psicoterapêutica para essa população. Apenas prisão, cárceres e "pseudo comunidades" que oferecem medicações em doses altas e a restrição da liberdade.

"A causa do aumento da população de rua é a péssima política pública de saúde mental. O que a Prefeitura e o Estado do Rio executam é a política da tranca, droga e do choque. Já coordenei o Hotel da Loucura, em um hospital do Engenho de Dentro, e a minha prática comprova que outra abordagem pode garantir resultados positivos. Tivemos diversos casos de sucesso e de pessoas que foram reinseridas na sociedade. Elas faziam teatro, eram acompanhadas por consultas médicas e orientadas. Assim, a gente via que elas saiam de um estado de psicose crônica para retomar sua consciência. Então, nossos governantes estão claramente adoecidos do ponto de vista mental", lamentou.

O psiquiatra completou sua opinião sobre o tema sugerindo que os representantes políticos não estariam compreendendo as maneiras mais eficazes de mudar o atual cenário.

"Eles não estão conseguindo entender a complexidade psicológica e psiquiátrica que a sociedade carioca está atravessando. E aí, vivemos isso, os números crescentes, a violência aumentando e a crise econômica se agigantando", concluiu.

O que diz a prefeitura do Rio?

A reportagem do portal Grande Tijuca procurou a Prefeitura do Rio para ouvir a atual gestão sobre as possíveis ações que estão sendo feitas em relação às pessoas em situação de rua e também para consultar os números computados pelo órgão. Em nota, a Secretaria Municipal de Assistência Social e Direitos Humanos (SMASDH) informou que não tem os números exatos correspondentes à população em situação de rua da cidade.

A Prefeitura também comunicou que, por meio de parceria entre a Secretaria Municipal de Assistência Social e Direitos Humanos e o Instituto Pereira Passos, tem programado a realização de um censo para apurar melhor estes dados. Entretanto, o levantamento foi adiado devido aos efeitos da crise sanitária causada pela pandemia.

"Vale ressaltar que levantamentos passados não são considerados, por conta do uso de diferentes metodologias, o que impede a comparação das informações. Além disso, os censos anteriores não levaram em conta certas peculiaridades da população em situação de rua.

Mesmo no momento delicado que estamos passando enquanto sociedade, a Secretaria Municipal de Assistência Social e Direitos Humanos mantém suas equipes em diversos locais do município para abordagem e acolhimento da população em situação de rua, além da instalação de tendas 24h para atendimento. Desde o início da pandemia, já realizamos 32.588 atendimentos, além de distribuirmos mais de 9.200 kits de higiene, tanto para a população em situação de rua, quanto para os abrigados em hotéis populares.

Com a terceira ala inaugurada no fim de maio, nosso ponto de acolhimento no Sambódromo está constantemente cheio desde então. Há uma necessidade latente da população em situação de rua por abrigo e acolhimento, em virtude do período atribulado pelo qual passamos, e a Prefeitura tem feito o máximo para responder a essa demanda.

Em junho, abrimos mais um Centro de Acolhimento Provisório (CPA IV), no Centro, com 50 vagas dedicadas inteiramente à população LGBT+. Esse é o quarto CPA dedicado ao abrigamento da população em situação de rua e vulnerabilidade social inaugurado desde março, o primeiro dedicado aos LGBT+. Com as vagas abertas no CPA IV, são ao todo 280 vagas em centros como estes, por onde já foram assistidos mais de 230 pessoas", disse um trecho do comunicado oficial.

O que diz o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos?

A reportagem também procurou o MMFDH para obter mais detalhes sobre as ações do Governo Federal em relação ao tema abordado. Em nota, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) informou que tem trabalhado com as políticas de proteção para a população em situação de rua, mas não deu maiores detalhes.

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